Tuesday, May 28, 2002

Notas sobre a 8ª Aula de Computação e Ciências Cognitivas
Tema: "O Riso e a cognição humana"


Uma das primeiras conclusões que tanto é tirada no livro como surgiu no debate foi a de que o riso se apresenta como um mecanismo de distanciação, isto de uma forma geral. Distanciação nomeadamente da origem causal do riso (tentarei desenvolver mais adiante, mas esta origem é actuadora de um realidade na cognição humana que por sua vez origina o fenómeno - o riso com uma origem cognitiva, sendo que também existe sem um papel cognitivo).

Admitindo um papel cognitivo no riso, pelo menos no tipo de riso que estivemos a discutir, podemos falar de uma auto-reflexão como origem do mesmo. Auto-reflexão motivada por uma descoberta de uma incongruência entre o modelo que temos da realidade e um modelo que nos é apresentado (numa anedota, numa situação cómica, numa peça, ou mesmo através do nosso próprio raciocínio sobre um assunto - e depois nos rimos sozinhos). Ora através desta auto-reflexão e ao lidar com uma incongruência disse-se no debate que nos apercebemos de ignorância da nossa parte. Onde estará essa ignorância? Ao vermos abalada a nossa percepção da realidade, seja porque apercebemo-nos, face à alternativa originária do riso, que nunca pensamos sequer sobre essa realidade, simplesmente aceitando-a como parte do mundo, ou porque nunca pensamos possível tal alternativa (se o riso origina uma conscencialização da nossa ignorância, motivando eventualmente o pensamento mais profundo, poderá ser uma ferramenta de conhecimento, de aprendizagem mesmo - ver desenvolvimento mais adiante). Sendo assim podemos talvez ver o riso como um processo alternativo à humildade de admitir uma ignorância, sem sairmos afectados no nosso ego, contudo sem os defeitos da arrogância.

Dessa compreensão de mundos alternativos advém uma desmistificação do nosso próprio mundo, através de uma compreensão de uma realidade alternativa partilhada (ou não) e da sua confrontação com a nossa realidade.
Julgo que concluímos também de uma forma geral no grupo envolvido no debate que nem todas as situações que nos levam a ter presente no nosso pensamento um mundo alternativo são fonte de riso. Julgo ainda que não são apenas estas situações que podem originar o riso.

Vejamos então o riso como um mecanismo com bases essencialmente genéticas, activadas por diferentes processos (cognitivos ou não). As formas dos processos cognitivos que fazem actuar o riso são bastante distintas entre si (riso provocado pela observação de uma excentricidade, por um acidente de repercussões limitadas, por uma anedota, por uma falha mesmo que pessoal, etc.), estando esta diversidade associada a aspectos essencialmente meméticos (daí o comentário de [BERGER] "humor is an antropological constant and is historically relative").

Será também interessante ter em consideração a ligação do cómico com a ambiguidade das linguagens (nomeadamente no que toca às anedotas), originando-se o cómico numa incongruência, no caso da linguagem a existência de dois significados mentalmente distintos mas que se concretizam no mesmo discurso (interessante ter em conta a ideia de que não pensamos apenas com a linguagem e como tal no nosso pensamento não existem ambiguidades presentes nas linguagens que usamos).

Afastando-nos do cómico transmitido pela linguagem podemos pretender verificar se realmente as situações cómicas que advém de uma observação da realidade apresentam alguma incongruência. Ora sendo que ao contar uma anedota temos uma exposição de uma realidade, possivelmente alternativa, que confrontamos com o modelo que temos da realidade, sem contudo alterarmos este último, numa observação de por exemplo um pequeno descuido (um tropeção de uma pessoa bastante respeitável digamos) já a realidade é só uma, apesar de nos ser apresentada uma realidade que não compreendemos muitas vezes no nosso modelo cognitivo (daí uma reacção de surpresa). Será que a incongruência está mesmo presente? Falamos dos copos que caem dos tabuleiros na cantina e do efeito que isso tem, mesmo que seja algo que acontece com alguma frequência. Temos portanto uma situação em que o modelo de comparação não é o modelo do que sabemos fazer parte da realidade mas um modelo do que é socialmente correcto e normal e o que não é, e é aí que estará a incongruência (entre o modelo social e a realidade, que até já faz parte do nosso modelo de realidade).

Ora é aqui que o posto no final do parágrafo anterior entra em colisão com a ideia que ainda não foi desenvolvida nesta ordem do texto, mas que já tinha estado a explorar, e que diz respeito à função do riso como motivador do enquadramento numa realidade (determinado tarado não irá achar piada a determinadas anedotas mais promíscuas). Antes de mais a ideia que tenho é a de que a comédia pode mesmo actuar como meio de ensino de valores de realidade, através da ridicularização de realidades incongruentes. Pergunto mesmo se, assumindo que a comédia tem um suporte natural no ser humano, será que a educação através desta é um forma de ensino privilegiada?

No desenvolvimento dado por Peter Berger na recolha que li do livro "Redeeming Laughter" [BERGER] não encontrei propriamente uma referência a algo que acho de certa forma crucial na relação do riso com a criança. Apesar das referência a jogos como o "peekaboo" não se menciona que, ao explorar situações de uma não realidade, o riso pode funcionar de forma a explicitar o funcionamento da realidade, de certa forma reforçando as ideias que temos da realidade, sem contudo nos privar de todo de alternativas e sem nos fazer sentir presos por completo à realidade, funcionando como um meio de fuga.

Contudo a colisão mencionada mais acima dá-se pelo facto de o riso não poder funcionar como a única ferramenta de ensino, isto visto no caso existirem noções de moral que não estão automaticamente presentes na realidade visto serem regras sociais, abstractas (do ponto de vista de partirem de um modelo cognitivo não percepcionado), que têm que ser postas em prática. De outra forma todo o tipo de sistemas criados pelo ser humano sobre a realidade (leis, regras sociais, as ciências, etc.) seriam simplesmente objecto de chacota visto muitas vezes irem contra a ideia que a realidade nos transmite (cf. por exemplo a não intuição por detrás de muitos fenómenos naturais).

A criança que descobre algo de novo da realidade, por exemplo como a Setsuko (no acutilante filme "Hotaru no Haka", pelo mestre Isao Takahata) que está a tomar banho com o irmão, recém chegados à casa da tia após um ataque com bombas incendiárias a Tóquio (o filme tem lugar durante a II Guerra Mundial). O banho apresenta-se só por si como um momento de afastamento da dura realidade, que certamente moldou traumaticamente a pequena Setsuko. O irmão pega no pano com que tomavam banho e enchendo-o de ar mergulha-o parcialmente na água, a Setsuko pressiona o pano e sente a capacidade de o deformar (a elasticidade da superfície), pressionando-o um pouco mais mergulha-o totalmente e este deixa o ar sair numa bolha que salpica a cara de Setsuko assustando-a. O irmão, naturalmente, ri-se do momento, uma fuga da realidade anterior (a destruição da sua casa, cidade, a morte da sua mãe) contida na realidade do banho (tornando o momento como que num sonho), mas Setsuko fica apenas apreensiva, não se ri no filme, contudo rir-se-ia noutra situação logo que sentisse o perigo passado e saboreasse a doçura de uma sensação nova sem consequências nefastas, a realidade afinal não é tão nefasta como a realidade que rapidamente projectou na sua mente (ao ponto de se preparar para defender dela, nomeadamente aumentando os níveis de adrenalina).

Como ferramenta cognitiva enraizada no ser humano nos níveis mais basilares (a experiência de rir está presente em inúmeros níveis de consciência, nomeadamente menos cognitivos que o riso abordado, e é suportada por uma reacção física natural comum a toda a nossa espécie) o riso, especialmente na forma descrita no parágrafo anterior, dá como que um molde onde se encaixa e solidifica uma nova aprendizagem da realidade, uma descoberta de algo bom. Penso que esta é uma forma diferente de aprendizagem suportada no riso, mas a maior consequência desta resposta à realidade será talvez no plano da religião.

Face à abordagem do livro em que o autor descreve a forma como a mãe sossega a criança no seu colo e lhe diz "está tudo bem, não te vai acontecer nada", tal como o irmão da Setsuko lhe esconde a verdade sobre a mãe, e a passagem deste comportamento para uma explicação do comportamento religioso (esperar que exista uma forma de podermo-nos abstraír da realidade e das dores da mesma através de algo que não possamos espreitar e descobrir a realidade que pretendia ser escondida, tal como Setsuko descobre que a mãe estava morta ao ver que pretendiam vender os seus kimonos). Esta foi das ideias mais me marcou no livro.

Ao encontrar na realidade situações em que o inesperado acontece, mas vista a raridade destas experiências, as esperanças de Setsuko começam a desaparecer (apesar de conhecer a sensação das boas surpresas que a fazem rir estas raramente estão presentes) e, não fosse a morte subir-lhe às costas de pele enquistada, colada aos ossos, teria provavelmente encontrado na religião um lugar de inesperado (invisível), um alimento para algo que teria dentro dela: a esperança.

Por outro lado, pondo o riso (e a "habituação" criada pelo mesmo, de que se sente falta estando num mundo que já se conhece, a "dura realidade" como lhe chamam) um pouco de parte, podemos focar outro aspecto que, penso, irá ter as suas implicações na necessidade de um "alimento religioso" e explicaria assim o ponto comum a muitas religiões de apresentar dogmas, regras a serem cumpridas, normalmente no plano da moral. Durante o processo de formação de uma identidade moral [DAMON] as primeiras fases são baseadas no julgamento completamente exterior, sem focar a razão (a primeira fase é baseada no castigo e a segunda no prémio), as fases seguintes vão aumentando proporcionalmente à capacidade de percepção e compreensão da criança, abrangendo o efeito das suas acções nos outros e mais tarde uma consciência de leis globais, sendo que as fases seguintes trazem algo de altruístico à moral, existindo ideias de que, superiores mesmo às leis localizadas numa sociedade, ao contracto social estabelecido (mais fraco do que as leis, e portanto presente apenas mais tarde na identidade moral da criança), existem conceitos morais universais (direitos universais). Ora neste processo de alargamento de horizontes muitas pessoas não chegam à fase dos direitos universais existindo reminiscências (uma certa habituação digamos) às regras inquestionáveis, com as quais será mais simples lidar para essas pessoas, incapazes de julgar por si. Julgo que é sobre estas reminiscências que vêm assentar os dogmas da religião, abrangendo um campo de forma alguma coberto por outro conjunto de conceitos morais (exceptuando eventualmente o dos direitos universais num espectro bastante amplo).

Em termos da moral julgo que o riso apresenta múltiplos aspectos, de certa forma contraditórios (vista a manipulação que lhe é permitida fazer para fora realidade). Se o riso representa o afastamento da realidade, ao nos rirmos (de uma forma "pouco" cognitiva) dos colegas que deixam cair copos na cantina, estamos eventualmente a demonstrar que a relevância moral do acontecido não é representativa (ou podemos simplesmente estar a reagir a uma percepção de algo que não faça parte do nosso modelo da realidade, mas se fosse assim muito depressa deixávamos de achar piada ao acontecimento, o que não me parece que seja o caso). Não julgo que esta explicação seja completa, penso que muitas vezes o riso nestas circunstâncias é simplesmente a averiguação de que uma regra moral foi quebrada e de que o mundo real e a moral são distintos, uma certa sensação de liberdade, considerando o mundo moral como um conjunto de mais restrições sobre as restrições já adjacentes ao mundo real. Acho que este aspecto do riso como libertação da moral se torna mais evidente em anedotas que exploram situações imorais, contudo existe também o oposto, que utiliza o cómico do sentido de surpresa, em que o encadeamento de uma anedota nos faz imaginar uma situação imoral e a anedota acaba por nos apresentar uma inocência inesperada (que também pode não ser parte do nosso modelo de realidade).

Contudo a religião não partilha apenas o espaço cognitivo da moral com o riso. Desde a origem antropológica ao facto de tanto a religião como o riso representarem mecanismos de escape à realidade, as ligações sucedem-se. Tanto a religião como o riso não são mecanismos humanos genéticos em todo o seu espectro de acção, contudo existem em todas (ou quase todas) as culturas humanas apontando para uma pré-disposição genética para ambos os fenómenos (penso que poderá alternativamente ser consequência da entrada no ser humano no "nicho cognitivo", de notar a relação com a questão deixada em aberto num dos documentários que visualizamos e indicava a possibilidade de uma área do cérebro exclusivamente dedicada à religião). O caso do riso parece ter manifestações não cognitivas, tal como a religião por vezes se baseia apenas numa "sensação" de fé. O mundo não real que o riso nos abre por alguns instantes está permanentemente aberto nos templos de adoração divina, na casa dos crentes e em inúmeras manifestações religiosas pelo mundo fora.

Sendo que na religião a realidade alternativa é como que projectada por detrás da realidade que conhecemos do dia a dia (na sombra de uma oliveira, nos raios de Sol entre as nuvens pesadas, etc.) esta chega mesmo a pretender alterar mecanismos da realidade sobre a qual se projecta (ao contrário do riso que não tem um efeito coordenado de proposição para alteração da realidade, pelo menos no que me apercebo). No cómico já a fronteira se quebra mais rapidamente (não é necessária fé) mas voltamos à realidade bastante mais depressa, contudo com um sentido de relaxamento (interessante comparar com o dito "healing" de muitas religiões ou práticas "new age", será que "laugther heals?" no sentido espiritual também?).


Ainda sobre o humor como mecanismo de enquadramento da epistemologia da realidade, aprendizagem das mesma e prospecção:
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Dia: 25/05/2002, 2:00 da madrugada
Local: fila de trânsito para a ponte 25 de Abril (parece que as pontes existem apenas para um veículo de cada vez)
Nota: depósito de gasolina na reserva

Hoje estive de tarde com a Maria Antonieta, ela não me conhecia ainda bem nem eu a ela. Aconteceu que durante o decurso das nossas conversas por vezes saímo-nos com afirmações provocatórias, em alienação da realidade, por exemplo face a um comentário dela sobre o percurso que fazíamos não ser muito directo disse-lhe que ela não estava a confiar em mim e já estaria a pensar em algum argumento perverso associado ao meu comportamento, ao que ela prontamente respondeu que estava a ser paranóico, algo com o objectivo de alienar da realidade a minha afirmação (letting me know that my own humurous comment had been acknowledged as such), mas também como forma de percepcionar a realidade por detrás do meu argumento (o dito caso no livro [BERGER], em que uma afirmação humorística tem uma base de realidade que não é explícita, exemplo da ironia em que a realidade é destacada pelo foco cognitivo por detrás de uma afirmação).
Penso que deste tipo de situações casuais e típicas (protocolares até) no comportamento humano se depreendem ideias em processo de concretização, uma necessidade de confirmação informal e subtil de algo sensível. Vejamos o exemplo presente no gozo que é dirigido a uma pessoa alvo de boatos indicadores da sua homossexualidade, penso que se pretende utilizar este protocolo para obter uma confirmação ou negação implícita de algo que não seria natural questionar directamente e ao qual não se iria obter provavelmente uma resposta sem gerar um situação incómoda e, assim, evitável.


[BERGER]
Peter Berger, "Redeeming Laughter"

[DAMON]
William Damon, "The Moral Development of Children", Scientific American, August 1999

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